quarta-feira, 20 de maio de 2009

INSIGHT



Abriu a agenda de compromissos aleatórios e, dela, caiu um papel com marcas de batom. Nem vermelho, nem rosa, mas algum tom oscilante dessa escala. Era visível o lábio carnudo, ah se era! Pensou alto de olhos fechados. Onde estaria aquela mulher? Aquela que numa tarde qualquer de uma chuva qualquer, acenou por carona após o contratempo de um pneu furado.
O jeito foi parar no acostamento e esperar que o tempo amenizasse. Até lá conversariam trivialidades e ele nunca mais a veria. Só que essa parte não estava escrita na estória. Não sabemos ao certo se houve preliminar, o fato é que arrancaram as roupas e se atracaram no ritual animalesco do amor carnal como um casal de leões num cio reprimido. Foi tanta fartura de suor e pernas e gozo e seios e pelos e bocas... Que a chuva cedeu lugar ao sol e ao sono. No dia seguinte ele acordou e ela já havia desaparecido. No ar o perfume francês e a ressaca de uma licença felicidade. Um ano se passou, mas aquela tarde chuvosa ainda o fazia sorrir leve nos momentos de ímpeto adolescente. Um ano se passou e um papel com marcas de batom caiu da sua agenda. Reconheceu o perfume e nesse instante trovejou.

terça-feira, 19 de maio de 2009


LICENÇA FELICIDADE



Após uma alucinante noite de amor os corpos dialogavam pelo resquício de ar ofegante que comandou o balé de espasmos e ataques cardíacos dançantes. Nunca teria fim tanto tesão. O sol entrava e saía pelas frestas da janela, eram capazes de ficar dias se alimentando da luz que emanava dos umbigos enquanto o suor servia de imã as atrações dos poros. O vinho estava delicioso, vermelho sangue nas bocas de línguas vorazes. As velas espalhadas pelo quarto, uma a uma, de acordo com o sopro que preparava o cenário, se apagavam. O objetivo era atingir aquele momento que já não faz diferença estar de olhos abertos. Só calafrio nos cantos recônditos, só a mesma chama a hipnotizar a distância cada vez mais curta, só eu e você a planejar a próxima população no nosso planeta. O percurso deveria ser o mesmo, confundo-me. Cada passeio uma descoberta em forma de mordida, toque, textura, sabor... Cada chegada um novo mapa indicando que o infinito é mais na frente. Intimidade. A sensação é tão boa! Espantava o sono para que uma fotografia acontecesse, ela revelava o coração. Todas as cores! O dia chegava ao meio, precisava correr para a mesma cama e capturar o formato que ela tinha deixado no travesseiro. Após uma alucinante noite de amor era delicado não ter aquele pé embaixo das cobertas.

* ilustração de Mário Jr. http://www.fotolog.com/mario_quemario

UM REFLEXO

Ela morava dentro do seu espelho, uma das tantas que se revelava em hora ímpar, uma daquelas que tomava seu corpo e vontade, e arriscava-se a sentir o vento que anunciava um acontecimento inevitável. Mirava o castanho do olhar na lâmina prateada e entendia dos mistérios. Sorria! Chorava! Regurgitava sentimentos úmidos. Vez em quando percebia a força do inesperado, era assim que se fazia realmente feliz, que entendia da citação do João chamado Guimarães Rosa: Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo. E o que não se explicava, se sentia.
Era abril, provavelmente outono sem folhas tapete de vento, e o céu trazia um azul tão ensolarado que lhe cegava as vistas, lhe queimava os cílios fazendo um “trec trec” como se os olhos fossem resquícios de uma natureza que foi viva. Era criança num corpo de adulta. Possuía dois corações apaixonados e infinitas poesias que grudavam em seus poros quando estava com alguém, e mergulhavam nas suas veias quando se encontrava só dentro da caixa de fósforos que ardia suas cabeças. Tropeçava em sua própria confusão solitária.
O dia anterior teve duração ilimitada, experimentou sensações e colecionou vivências, não dormiu. Foi preciso se contorcer nos seus cinco sentidos para aflorar algo mais gratificante, para dar passos largos em sua cidadania. Foi necessário estalar seus ossos para abrir sua identidade, para ter consciência que também era só uma no meio da multidão que lhe freqüentava. O dia não ia ter fim no pós-despertar.
Quando descansou o corpo no instante da inércia espontânea imagens surgiram, sonhos. Entendeu ser o combustível para a imaginação que preenchia seus impulsos diários. Quase não havia lapso em bater a porta sem olhar para trás. Quase entornava um copo d’água de um só gole. E essa tentativa raquítica deixava cicatriz no pulso.
Ela habitava uma estação chamada ontem quando o tempo parou.

UM DIA QUALQUER



Gostava de se vestir de preto e caminhar na chuva, era a melhor alternativa para encontrar sossego em seus pensamentos turvos. Acreditava que a água que vinha do céu limparia suas dúvidas e traria a primavera. Não tinha medo dos trovões. Sentava na calçada e esperava por eles, anunciados pelos raios, como quem espera o grande amor durante toda uma vida. Quando a chuva era rápida, logo aparecia o sol, e ele continuava sentado até se secar, gostava da sensação de quentura que proporcionava a pele, mas se acontecesse uma tempestade, esperava ela acabar e, em passos apressados, voltava para casa, sempre espirrava, sempre gripado. Se alguém falava para se cuidar, respondia que era “resfriado molhado” e ninguém contestava, justamente por não entender o que aquele termo significava. Se ele dizia, acreditavam, afinal era um senhor respeitadíssimo no bairro, conhecido por ter escrito durante 30 anos para a gazeta da cidade. Era o homem das informações, era o cidadão responsável por levar notícia aquele canto perdido. Era quem fazia sombra em dias quentes.

Nunca se casou, nunca foi visto com mulher apesar de toda semana encomendar arranjos à floricultura da senhora Araci. As beatas se benziam por pensar que ele era torto no sexo, e ele não se importava, não era de briga, e nem acreditava em sermões religiosos, preferia ser andarilho sem fé. E o padre fazia questão de o encontrar, fingindo que era por acaso, para discutir futebol. Torciam pelo mesmo time, mas na verdade o interesse do “homem de Deus” era manter a gorda doação que seu conterrâneo esportivo contribuía mensalmente. E numa mesmice insossa o relógio andava, era dia e noite a mesma coisa. A mesma ausência de coisas para dar sentido ao nada. Tudo vazio. Tudo cinza. As pessoas se diluíam em conta-gotas de tédio. E ele, de binóculo, era um bom espectador do cotidiano.
Aos domingos, em fins de tarde, sentava no boteco da esquina para beber umas doses de cachaça, esse vício era teimoso, não o abandonava. Bebia até sentir que estava tonto, cambaleava para casa e caía na cama, só acordava na segunda, o álcool trazia uma vontade de tomar banho frio, e isso o motivava a viver a semana que sempre começava com gosto amargo. Acordava cedo e saía sem rumo, só voltava lá pelas 7 horas da noite, todo dia era assim, até que um dia ele não voltou. Deu 23h e nada dele surgir na esquina, passou uma semana e nada dele encomendar as flores, passou um mês e ninguém sabia das notícias, um ano depois não se comentavam mais nele.

UMA MANHÃ

Ela abriu a cortina e deixou o sol entrar com seus raios de dia, com suas mãos de fogo, com sua claridade absurda depois de uma noite insone. Precisava daquele ar para criar coragem de tomar o primeiro passo importante na grande mudança de sua vida. Vestiu-se de branco, lavou bem o rosto e colocou Nina Simone para cantar enquanto os passarinhos pulavam pelas árvores das ruas. Morava no 14º andar, o medo de altura a desafiava constantemente, tinha vertigens se olhava muito tempo para baixo, mas desde que adquiriu sua independência financeira, só escolhia lugares altos para habitar suas loucuras, dizia que era para sentir a sensação de liberdade que insiste em fugir de quem mora em cidade grande. Ficou pensativa diante os porta-retratos que enfeitavam a cômoda, era a sua vida narrada de maneira estática, pedaços de histórias mal contadas, resquícios que a memória não saberia esquecer, pois elas, as fotografias, não deixariam jamais. Esse estado de contemplação a deixava com a garganta seca, dava-lhe agonia, coceira na virilha, dor de cabeça! Temia pensar demais e descobrir que tudo o que vivera até ali tinha sido um lamentável engano. Mas aquela era sua vida, era o que a tinha conduzido até aquela manhã ensolarada, era o que determinaria o que estava por vir. Caiu na cama e ficou observando o teto. Sempre se imaginava caminhando de ponta cabeça, tendo de pular obstáculos pra adentrar outro ambiente, era assim que via sentido naquilo que não sabia explicar, uma bela metáfora da existência humana. Adormeceu.

Acordou e percebeu que duas horas haviam passado, como sempre não recordava se tinha sonhado. Levantou mal humorada e foi até a cozinha preparar um café. Bebeu amargo por preguiça de procurar o adoçante, que diferença fazia? Inventou uma teoria de que as bebidas mereciam degustação em seu estado de brutalidade. Sentiu os pés molhados, se esqueceu de fechar a torneira do banheiro quando lavou o rosto. Perderia dois tapetes, justo os que causaram tanta dor de cabeça na hora do “trocando em miúdos” do primeiro e único casamento. Foi tomada pelo cinismo, se os vizinhos a chamavam de louca pelos corredores, por ela usar a piscina da cobertura para lavar suas calcinhas, poderia sustentar o título sem hesitação. Não pensou duas vezes, arrastou os tapetes ensopados até a janela e os deixou voar como as fábulas do seu imaginário. Entrou em pânico quando ouviu o estrondo, seu ato heróico destruiu o carro do morador mais gostoso do condomínio. Sentiu vergonha. Correu para o chuveiro e deixou a correnteza misturar as suas lágrimas. E agora? O interfone tocava sem parar, a campainha disparava, ouvia os murros nas portas. Saiu do boxe olhou-se no espelho. Quem era aquela mulher? Selma! Selma! Selma! Era seu nome que chamavam. E se escondesse embaixo da cama? Sentiu-se como criança que foge por ter tirado nota vermelha. Teria de agir rapidamente! Abriu o gás do fogão e ateou fogo na casa! Agora era ela quem gritava por socorro, pensariam que numa atitude de autodefesa se livrou dos tapetes. A porta seria derrubada, esperava por isso, e, na dúvida, não quis assistir ao enterro da última quimera, pulou da janela para encontrar o vento. Morreu!

COMO UM SAX NO TELHADO (Para Cortázar)




A Argentina estava em guerra, os alemães eram os inimigos, mas eles permitiram que o garoto Julio fosse embora, pacificamente, com sua família, para temporadas na Espanha e Suíça. As lembranças da sua infância não eram precisas, vinham como raios, lembrá-lo que um dia deveria voltar a ver com outros olhos a Buenos Aires querida, redescobrir o sabor do alfajor com seu doce de leite escuro e poder lembrar de quando a avó materna contava que para obter o ponto exato do doce, era preciso esperar a primeira lua cheia de cada mês, e ofertar o choro de nascimento das crianças de cabelos dourados que nasciam naquela noite. Acreditando que o fantástico fazia parte da vida cotidiana, ele cresceu.
Sempre fora tímido com os amigos e com as mulheres, sempre fora elegante com as gravatas e os chapéus, sempre teve cara de bom moço a enfeitar fotografias em preto e branco. Para evitar que lhe apertassem as bochechas, deixou a barba crescer, e ela se transformou em marca registrada de homem solitário. Gostava dessa condição, acreditava que a solidão era uma fiel companheira que revelava seus melhores e piores espelhos. Nos seus reflexos via o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e na loucura reconhecia a responsabilidade que teria pelo decorrer da vida: escrever as intuições que surgissem em sua cabeça, se confrontar com os duplos que era.
Ao deitar a cabeça no travesseiro fazia orações a outro Julio, o Verne. E até sonhava que era invisível, e nessa condição de dono do mundo, dançava jazz vagando pelas ruas enquanto ajeitava os óculos redondos de armação preta, e refletia sobre os cartazes que faziam propagandas e comunicados nos muros. Sofria por pensar que o primeiro que fora colado era agora o esquecido pelos demais pregados em cima. Os pensamentos lhe doíam, jamais seria um intelectual das idéias, se isolava por não gostar de discussões, nunca soube defender seus pontos de vista. Guardava-os para si e se conformava em ter uma vida como um disco arranhado a girar na vitrola
Passava os dias a descobrir seu lugar, aos 70 anos deixou de passar, e nunca descobriu que sua casa era seu próprio corpo que nunca parou de crescer. Um dia seria capaz de tocar as estrelas. Adormeceu sem saber que era perseguidor de si mesmo, que era prisioneiro das confissões de seus próprios jogos:
Ninguém suporta as coisas por muito tempo aqui, nem sequer você e eu, é preciso viver combatendo, é a lei, é a única maneira que vale a pena, mas dói...

* ficção de uma cronópio