terça-feira, 19 de maio de 2009

UM REFLEXO

Ela morava dentro do seu espelho, uma das tantas que se revelava em hora ímpar, uma daquelas que tomava seu corpo e vontade, e arriscava-se a sentir o vento que anunciava um acontecimento inevitável. Mirava o castanho do olhar na lâmina prateada e entendia dos mistérios. Sorria! Chorava! Regurgitava sentimentos úmidos. Vez em quando percebia a força do inesperado, era assim que se fazia realmente feliz, que entendia da citação do João chamado Guimarães Rosa: Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo. E o que não se explicava, se sentia.
Era abril, provavelmente outono sem folhas tapete de vento, e o céu trazia um azul tão ensolarado que lhe cegava as vistas, lhe queimava os cílios fazendo um “trec trec” como se os olhos fossem resquícios de uma natureza que foi viva. Era criança num corpo de adulta. Possuía dois corações apaixonados e infinitas poesias que grudavam em seus poros quando estava com alguém, e mergulhavam nas suas veias quando se encontrava só dentro da caixa de fósforos que ardia suas cabeças. Tropeçava em sua própria confusão solitária.
O dia anterior teve duração ilimitada, experimentou sensações e colecionou vivências, não dormiu. Foi preciso se contorcer nos seus cinco sentidos para aflorar algo mais gratificante, para dar passos largos em sua cidadania. Foi necessário estalar seus ossos para abrir sua identidade, para ter consciência que também era só uma no meio da multidão que lhe freqüentava. O dia não ia ter fim no pós-despertar.
Quando descansou o corpo no instante da inércia espontânea imagens surgiram, sonhos. Entendeu ser o combustível para a imaginação que preenchia seus impulsos diários. Quase não havia lapso em bater a porta sem olhar para trás. Quase entornava um copo d’água de um só gole. E essa tentativa raquítica deixava cicatriz no pulso.
Ela habitava uma estação chamada ontem quando o tempo parou.

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