terça-feira, 19 de maio de 2009

UMA MANHÃ

Ela abriu a cortina e deixou o sol entrar com seus raios de dia, com suas mãos de fogo, com sua claridade absurda depois de uma noite insone. Precisava daquele ar para criar coragem de tomar o primeiro passo importante na grande mudança de sua vida. Vestiu-se de branco, lavou bem o rosto e colocou Nina Simone para cantar enquanto os passarinhos pulavam pelas árvores das ruas. Morava no 14º andar, o medo de altura a desafiava constantemente, tinha vertigens se olhava muito tempo para baixo, mas desde que adquiriu sua independência financeira, só escolhia lugares altos para habitar suas loucuras, dizia que era para sentir a sensação de liberdade que insiste em fugir de quem mora em cidade grande. Ficou pensativa diante os porta-retratos que enfeitavam a cômoda, era a sua vida narrada de maneira estática, pedaços de histórias mal contadas, resquícios que a memória não saberia esquecer, pois elas, as fotografias, não deixariam jamais. Esse estado de contemplação a deixava com a garganta seca, dava-lhe agonia, coceira na virilha, dor de cabeça! Temia pensar demais e descobrir que tudo o que vivera até ali tinha sido um lamentável engano. Mas aquela era sua vida, era o que a tinha conduzido até aquela manhã ensolarada, era o que determinaria o que estava por vir. Caiu na cama e ficou observando o teto. Sempre se imaginava caminhando de ponta cabeça, tendo de pular obstáculos pra adentrar outro ambiente, era assim que via sentido naquilo que não sabia explicar, uma bela metáfora da existência humana. Adormeceu.

Acordou e percebeu que duas horas haviam passado, como sempre não recordava se tinha sonhado. Levantou mal humorada e foi até a cozinha preparar um café. Bebeu amargo por preguiça de procurar o adoçante, que diferença fazia? Inventou uma teoria de que as bebidas mereciam degustação em seu estado de brutalidade. Sentiu os pés molhados, se esqueceu de fechar a torneira do banheiro quando lavou o rosto. Perderia dois tapetes, justo os que causaram tanta dor de cabeça na hora do “trocando em miúdos” do primeiro e único casamento. Foi tomada pelo cinismo, se os vizinhos a chamavam de louca pelos corredores, por ela usar a piscina da cobertura para lavar suas calcinhas, poderia sustentar o título sem hesitação. Não pensou duas vezes, arrastou os tapetes ensopados até a janela e os deixou voar como as fábulas do seu imaginário. Entrou em pânico quando ouviu o estrondo, seu ato heróico destruiu o carro do morador mais gostoso do condomínio. Sentiu vergonha. Correu para o chuveiro e deixou a correnteza misturar as suas lágrimas. E agora? O interfone tocava sem parar, a campainha disparava, ouvia os murros nas portas. Saiu do boxe olhou-se no espelho. Quem era aquela mulher? Selma! Selma! Selma! Era seu nome que chamavam. E se escondesse embaixo da cama? Sentiu-se como criança que foge por ter tirado nota vermelha. Teria de agir rapidamente! Abriu o gás do fogão e ateou fogo na casa! Agora era ela quem gritava por socorro, pensariam que numa atitude de autodefesa se livrou dos tapetes. A porta seria derrubada, esperava por isso, e, na dúvida, não quis assistir ao enterro da última quimera, pulou da janela para encontrar o vento. Morreu!

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